“O silêncio dos livros”; autor: Fausto Luciano Panicacci; editora: Pandorga; 255 páginas.
Hilário Pena de Jesus. Hilário em homenagem a um parente do homem do orfanato, pena por ser tão franzino e de Jesus, porque não era de ninguém. Foi o que o jovem foi por muito tempo, até sair do orfanato e cometer um crime. Ele acertou um homem com uma garrafa e o matou.
Apesar de ter visto de relance algumas reportagens que avisaram de uma nova lei, ele não prestou muita atenção, no entanto, e foi julgado perante essa nova lei. E nela, as pessoas que cometiam crime eram submetidas a exames para ser analisada a presença do gene-C em seu DNA. Gene-C seria o gene da criminalidade. Se você já tinha parentes na família com isso ou tendência para ser um criminoso, era detectado no exame e você recebia imediatamente a pena de morte.
Mas os exames de Hilário deram negativo para o gene-C, mesmo assim, ele havia cometido um crime. Então o que estava errado? Hilário foi preso de qualquer forma, afinal, poderia ter a possibilidade de ele ter o gene virtual. Em todas as hipóteses, mantê-lo preso era a melhor opção. A cada quatro anos ele repetia o exame, sempre dando negativo e sua liberdade continuando ser negada e aos poucos Hilário já perdia sua juventude... e sua sanidade.
Quando imaginava que estaria fadado a viver sua reclusão sempre sozinho, foi colocado ao seu lado um senhor que havia cometido um crime peculiar. O senhor de idade era acusado de tráfico, mas a mercadoria era livros! Os livros haviam sido proibidos no país!
Antonio comercializava livros desde sempre e permaneceu realizando seu trabalho mesmo após a proibição. Ao ser pego transportando para outro local, foi pego e levado a julgamento. Pegou uma pena e multa e agora era obrigado a dividir a cela com Hilário.
Essa aproximação não poderia ter sido mais satisfatória. A paixão que Antonio tinha pelos livros logo pôde ser transmitida para Hilário quando eles decidiram reformar a biblioteca da penitenciária. Hilário, que sempre foi um estudioso da arquitetura, jamais imaginava que poderia ser adeptos aos livros literários e se encantou com o mundo que encontrou ali.
“-Ora, e desde quando Literatura não é a sua área? Se ainda não está morto, então é a sua área. É minha área. É a área de todos”.
Paralela a essa história, somos apresentados a Santiago, um homem erudito, viajado que luta pelo retorno dos livros. Ele vive sozinho, mas foi acolhido pela família vizinha com quem sempre almoçava ou jantava. A família tinha uma pequena menina, muito rejeitada, mas que se encantou com Santiago e suas grandes histórias. A menina Alice, muito curiosa, estava sempre buscando uma oportunidade de ouvir as histórias que Santigo conhecia e passou a chamar ele de “Avô de letrinhas”.
“Gostava de ouvir conversas e repetir para si as falas dos outros, imitando as vozes para memorizar. Como uma catadora de palavras, anotava tudo em seus caderninhos. Não entendia bem o que os adultos diziam, mas abraçava as palavras mesmo assim – para quando crescesse e fosse sabida”
A menina, que já era sabida e não sabia, observava todos os personagens daquela história. Seus pais, sua irmã e Santiago, numa relação movida por mentiras. Alice não entendia porque os adultos mentiam, mas ela nada poderia fazer. Enquanto tentava ganhar a atenção de Santiago, se esquivando de seus pais, ela encontrou um caderno que Santiago deixara cair, nele, em sua capa dizia “Hilário Pena”, apesar de curiosa, sabia que não podia invadir a privacidade do homem, por isso o devolveu. Mas novamente o caderno foi deixado próximo dela. Entendendo que a “perda” havia sido proposital, ela decidiu guardar.
“Hilário pensou em fazer um relato das ausências que povoaram sua vida – e dos livros silenciosamente ingressando nela, modificando-a”.
O livro é uma verdadeira carta para os leitores apaixonados. Acompanhando o amadurecimento de Hilário e sua relação cada vez mais próxima dos livros nos faz enxergar a importância que esse pequeno objeto possui na nossa vida. De forma quase poética, os acontecimentos são narrados com leveza e precisão. É possível sentir os personagens bem próximos e sentir suas emoções.
“-Não confunda felicidade com satisfação imediata de desejos, mocinha. A felicidade deve estar nas escolhas feitas. Talvez seja na plenitude de sua alma, em estar bem consigo mesma”.
É, sem dúvidas, um livro que enaltece a beleza e o poder dos livros. E isso só me trouxe ainda mais motivação para seguir incentivando a leitura, transmitindo essa paixão que Hilário sofreu tanto para transmitir. O final dramático trouxe ainda mais um choque de realidade, ao mesmo tempo que nos apresenta um desfecho emocional e excepcional. Senti uma sensação de dever de leitora cumprido ao terminar essa obra que, com certeza, vai ficar permanecer em minha memória para sempre.
“-Os livros foram muito importantes para mim – disse Santiago – A Literatura fornece-nos muitas chaves para compreensão da vida; basta apanhá-las e abrir as portas”.
Experiência paralela
Enquanto eu realizava a leitura desse livro, me identificando com a paixão que era transmitida pelas suas páginas, aconteceu um fato inusitado comigo. Eu, como a maioria já sabe, desenvolvo aqui um projeto de doação de livros. Raramente peço contribuições, mas em janeiro eu precisei pedir, pois o acervo já estava bem escasso. Decidi anunciar em um grupo no facebook da minha cidade, apresentando meu projeto e pedindo que, se alguém tivesse livros para doar e contribuir com o projeto, me avisasse que eu iria buscar. Tamanha foi a minha surpresa quando eu recebei o comentário abaixo:
A princípio, eu ignorei, no entanto, isso se repetiu. Ele voltou a dizer que livros deveriam ser jogados mesmo no lixo e isso me causou tamanha revolta que tive que rebater. Disse a ele que, para ele, livros poderiam ser lixo, mas para outras pessoas livros poderiam salvar vidas. Disse ainda que não esperava que ele entendesse, mas exigia que ele respeitasse. E mais uma vez fui respondida com grosseria e ódio aos livros.
Eu não imaginava que existia pessoa com essa mentalidade. Com ódio de livros. Sempre vi pessoas que não gostam de ler dizendo que gostariam de ter o hábito, mas por algum motivo não o tinham. No entanto, ver alguém se desfazer tão cruelmente dos livros, foi algo que me chocou.
Como pode uma pessoa falar dos problemas políticos que enfrentamos e desfazer dos livros? Eu posso estar enganada, mas acredito que se mais pessoas lessem, provavelmente elegeríamos pessoas mais qualificadas. Seríamos pessoas mais conhecedoras do mundo como um todo e seria mais fácil argumentar e encontrar soluções. Mais uma vez, posso estar enganada quanto a isso, mas tenho certeza que não estou enganada em relação ao poder que os livros tem. De aumentar o vocabulário, a capacidade de argumentação, melhorar a memória e concentração. E de curar a ignorância.
Para a pessoa que fez esse infeliz comentário certamente não há mais solução, já que ele recusa exatamente o que o poderia mudar. Mas espero que a próxima geração seja mais Hilário Pena e Antonio, sempre lutando pela liberdade dos livros, das histórias... Se deixando ser mudado pelos conhecimentos que adquirem por meio de algumas páginas de um simples exemplar e enaltecendo a mudança que eles podem fazer na nossa vida. Ser leitor é um estilo de vida que faz bem.
Ainda que os livros fossem proibidos, eu ainda lutaria por eles.
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